16 de dezembro de 2008

Questão indígena

Antonio Sebastião de Lima
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Foto de Valter Campanato/ABr
As constituições brasileiras de 1934 e 1946 e as cartas fundamentais de 1937 e 1967 previam a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional e reconheciam a posse das terras por eles ocupadas tradicionalmente. A Constituição de 1988 incluiu essas terras entre os bens da União, o que obstou a propriedade privada. O ritmo lento das demarcações pelo governo contrastava com o ritmo veloz das invasões pelos colonos, madeireiros e mineradores. A ação judicial em trâmites no Supremo Tribunal Federal (STF) para tornar sem efeito a demarcação da reserva indígena situada no Estado de Roraima representa mais um capítulo dessa novela. Até o momento, oito ministros decidiram pela validade do processo demarcatório. Houve quatro votos prolixos, repetitivos, enfadonhos, cada um gastando mais de 60 minutos ao ser proferido (ministros Ayres Britto, Meneses Direito, Carmem Lúcia e Ricardo Levandowski). Os outros quatro votos foram de menor duração (ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, César Peluso e Ellen Gracie). Todos concordaram em inserir regras na parte dispositiva da sentença do tribunal (acórdão). Normalmente, lança-se no dispositivo da sentença apenas o juízo de acolhimento ou de rejeição (total ou parcial) da pretensão deduzida na petição inicial, resolvendo as questões suscitadas pelos litigantes. Embora bem intencionado ao mirar a efetividade do julgado e prevenir futuros litígios, o STF extrapolou os limites da lide (CPC 128 + 460). A ação judicial não era de mandado de injunção. O tribunal invadiu competência do Legislativo ao ditar normas de caráter geral que regulam situações futuras. O princípio da separação dos Poderes restou violado.
Na sessão de julgamento (10/12/08) foi louvada a sutileza do legislador constituinte por empregar “povos indígenas” em lugar de “nações indígenas”. Na verdade, o legislador usou os termos seguintes: populações indígenas, índios, grupos, comunidades. População é conceito demográfico, enquanto povo é conceito jurídico e nação é conceito sociológico. Na linguagem vulgar, tais vocábulos são empregados como sinônimos. “Nação indígena” é expressão sociologicamente correta. Enquanto nação, os índios podem se espalhar por vários países, como acontecia com os judeus até a primeira metade do século XX. Diferentemente dos judeus, os índios carecem do grau de civilização suficiente para constituir um Estado. A incidência eventual do princípio das nacionalidades (“cada nação, um Estado”) exige um prévio e longo processo de aquisição de ciência e tecnologia e de formação de uma complexa organização política. A parcela de índios localizada em solo brasileiro está submetida ao direito brasileiro e passa a integrar o povo brasileiro após se emancipar do regime tutelar. O índio se emancipa ao completar 21 anos de idade, entender a língua portuguesa, compreender os usos e costumes da sociedade brasileira e exercer atividade lícita e útil. A comunidade indígena se emancipa quando a maioria dos seus membros preenche os citados requisitos.
Os índios participaram das lutas entre europeus na América do Sul. Na disputa pelo Rio de Janeiro (França Antártica) em 1555, lutaram ao lado dos franceses, os chefiados por Cunhambebe, e ao lado dos portugueses, os chefiados por Araribóia. Na batalha de 1633/1634, travada no Nordeste, os índios chefiados por Poti lutaram ao lado dos portugueses e os chefiados por Nhanduí, ao lado dos holandeses. Na época, o Brasil não existia como nação, nem como Estado. Os índios perderam suas terras para o conquistador europeu. Com a independência do Brasil, as terras ficaram sob domínio exclusivo do Estado brasileiro. Aos índios foram assegurados: (i) a posse sobre as áreas que ocupavam por tradição (ii) o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes. Como titular da soberania territorial, o Estado brasileiro declarou aquelas áreas inalienáveis e indisponíveis. Reserva indígena supõe terras contínuas. Sem isto, a comunidade se desestrutura. Ao indígena é vital a área ecológica cuja fauna e flora não lhe guardam segredos, onde são conhecidos os caminhos que levam aos recursos naturais e as condições climáticas que norteiam a sua vida econômica.
Como acentuou o ministro Peluso, a autonomia da reserva indígena não impede que agentes do governo federal, com objetivos estratégicos, científicos e humanitários, lá penetrem, permaneçam, locomovam-se e construam. A autonomia dos índios reside na sua organização social, nos seus costumes, crenças e tradições. Entram na categoria de terras tradicionalmente ocupadas, aquelas terras por eles habitadas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural. A demarcação respectiva compete à União Federal. O acatamento cabe a todos.
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O autor é professor e juiz de direito aposentado, de Penedo

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